Contos



 Pessoa...

"Pessoa com alguns traços de juventude em situação muito difícil procura apoio monetário, em troca oferece aquilo que você sabe, não lhe poderá dar amor, apenas a ilusão de que é amado`".
Este, o anúncio que acaba de redigir ao mesmo tempo que redigiu o ultima traço de dignidade que lhe restava. Lentamente dobra a folha de papel onde as linhas ferem de morte, abre a carteira e deposita bem no fundo a ultima tentativa na roda da sobrevivência, tentando talvez esconder os traços da miséria em que a sua vida se tornou. Amanhã será publicado nos jornais diários.
Levantou-se e dirigiu-se à casa de banho onde freneticamente passa o rosto por água fria, de repente olhando o espelho, fica especada com a imagem reflectida, há muitos dias que não se olhava com tal intensidade, não se reconhece, em poucos anos a cabeça ficou completamente branca, a juventude desapareceu e as rugas tomaram de assalto a sua pele branca. Sempre foi uma pessoa sozinha, sem parentes ou familiares chegados, desde que os pais morreram quando na sua juventude, que viveu para si, contudo sempre foi auto-suficiente, sempre se considerou uma pessoa de cabeça no lugar, nunca deu um passo maior que as pernas, enfim foi uma pessoa normal, dentro de uma normalidade estipulada pelos princípios mansos do país onde nascera.
Há pouco mais de meia dúzia de anos a sua vida quebrou momentaneamente, de um momento para o outro viu-se sem trabalho, mas como pessoa de força depressa mudou de rumo numa outra actividade, foi por essa altura que conheceu alguém, ao que lhe pareceu o amor de uma vida, a esse alguém se dedicou com tal intensidade que aos poucos se esqueceu de quem era, deixou-se moldar nos seus ideais com o intuito de agradar à pessoa que amava, mas tudo o que fazia era sempre pouco, nada tinha valor, consecutivamente era apelidada de mau carácter ou de oportunista, eram lhe atirados à cara amantes que não tinha e vidas que não conhecia, mas como?  se continuava a sustentar todas as suas necessidades com o esforço do seu trabalho,  se não dependia de ninguém para viver, se andava na rua de cabeça levantada, se se afastou de todas as suas amizades, para que o outro deixasse de ter ciúmes, o erro onde se reconhecia era ter amado alguém que não devia, submersa em acusações sem sentido, foi perdendo a vontade de viver, daí a ficar sem emprego de novo foi um passo, passou a enfrentar os dias à conta de antidepressivos sentindo-se cada vez mais sozinha, desde então as dificuldades para sobreviver foram constantes, e quem a devia amparar era quem a deitava sempre mais e mais abaixo, com um comportamento doentio e mesquinho, um dia quando deu por si tinha metido as mãos pelos pés, passou a ser uma pessoa fria e calculista numa tentativa absurda de soterrar tudo o que de mau existia na sua vida, meteu na cabeça que só com a autodestruição ficaria livre, fez não sei quantos disparates, agora sim o outro já tinha razão, agora era uma pessoa ruim que nada merecia.
Hoje quando acordou sentiu fome, há muitos dias que não sentia fome, abriu o frigorífico e este estava vazio, pela primeira vez em muitos meses se deu conta da sua triste realidade, o país envolvido numa crise profunda não dava novas oportunidades a ninguém, até os mais jovens tinham que sair para o estrangeiro em busca de vida nova, muitas as famílias com fome, os desalojados de suas casas por falta de meios, os desempregados. Perdeu a conta aos currículos que enviou, nunca teve resposta, nas instituições a que recorreu disseram-lhe que não tinha direito a nada. Como não tinha direito a nada se trabalhou toda a vida, desde que se conhecia por gente.
Voltou a olhar o espelho e de repente soube que a situação em que se encontrava tinha um fio condutor, enquanto não entregou o coração apesar das dificuldades sempre teve que comer, o amor afinal também serve para nos tolher o bom senso, basta termos o azar de amar a pessoa errada, há amores que cuidam, alimentam a alma e há os que nos destroem por completo, os que nos utilizam como se de lenços descartáveis fosse o nosso ser. Daí a sua decisão, tomaria um banho, vestiria a sua melhor roupa e venderia a alma ao diabo para sobreviver.

O tio Joaquim...
Nove da manhã e eu ali — Sentada no banco do quintal. É um banco tosco e corroído pelas intemperes. Um dia destes; averiguei se alguém sabia como é que ali tinha ido parar. Que ditosas mãos o tinham esculpido — em xisto negro, uma peça única que termina nuns desajeitados pés arredondados.
Este tosco banco tem-me dado que pensar: como é que alguém conseguiu esculpir tão rara peça? Todos sabemos que o xisto, se,  martelado, se parte às lascas. Portanto: este banco é coisa de mestre!
Escusado será dizer; ninguém da vizinhança se seduziu pelo meu repentino, interesse, no banco e a questão perdura desde então. Estava para ali sentada há mais de meia hora e só nessa altura reparei no tio Joaquim — O meu vizinho da frente. Anda numa grande lida. É um homem de poucas falas, ele e a mulher, vivem ali, vai para mais de quarenta anos. Na vizinhança: conta-se que a mulher lhe faz a vida negra, afiançam: "não passa de uma megera, que, aos poucos o vem matando.” Filhos, não tiveram, e ninguém lhes conhece mais família. Quem sabe, seja ele a pessoa indicada para esclarecer as minhas dúvidas.
Meio acabrunhada chego-me ao muro do quintal e dou a salvação ao vizinho:
    — Bom dia Tio Joaquim!
 Esqueci-me que ele é surdo que nem uma porta e falei tão baixo, que o velhote continuou na sua lida, sem dar por mim e foi a mulher quem me respondeu:
     O que é que vossemecê deseja, está para ai a falar, mas, ele não a ouve!
 Rodou nos calcanhares, e, lá vai a megera meteu-se em casa!
 Mal ela bateu com a porta o tio Joaquim deu pela minha presença e aproximou-se do muro, segredando:
   — Bom dia menina… diga lá de sua justiça e não ligue à Francelina… Ela pensa que sou surdo, mas... não sou… Ouço tudo, com estes que a terra há-de comer… e já não vem longe essa hora!
Se eu estava embasbacada com a Francelina, fiquei sem palavras, com o marido, ainda assim, consigo gaguejar:
  O tio Joaquim sabe como é que o banco de xisto aqui veio parar?
Ele olhou para mim, franziu e sobrolho e respondeu:
  Ó menina, com tanto problema que a vida traz, agora, embeiçou-se pelo banco! Tem mas é que arranjar um namorado. Uma senhora da sua idade precisa de companhia… mas veja lá… não faça como eu… escolha, escolha bem!
Isto vai de mal a pior, não querem lá ver, todos pensam que o homem é despercebido e no fim está atento a tudo, e, lá respondo:
  Gato escaldado de água fria tem medo… Mas sabe quem fez o banco ou não?
  Claro que sei, foi o Manel, o quinteiro… Aqui na vila, só ele tinha paciência para essas modernices. Embeiçou-se pela filha do Serpa e ofereceu o banco ao velho, para poder namoriscar a filha!
  Ah! Fiquei ali, de boca escancarada. O velhote sorriu e mandou que a fechasse, acrescentando:
  Agora vá à sua vida que hoje tenho muito que fazer. Logo à tardinha… tenho um encontro. Pena que não conseguirei ver a cara da cabra. É assim que lhe chamam, sabia? E esta coisa de eu ouvir é um segredo só nosso.
 Sorriu-me com um olhar ternurento e virou-me as costas e eu voltei a sentar-me no banco, sem ligar a mais de metade daquilo que ele dissera.
Foi assim que as coisas se passaram esta manhã, desde, então, o pior aconteceu. Eram mais ou menos quatro da tarde Apercebi-me do reboliço na casa da frente, cheguei-me novamente ao muro. Aspirava questionar um polícia de olhar carrancudo, que se encontrava junto à porta da garagem e atrevi-me:
  Desculpe, que aconteceu?
  O velhote enforcou-se na garagem. A sua voz soou tão gelada e tão desnutrida de sentimentos, que me deixou abananada e só consegui responder:
  Ah.   Era a segunda vez que o tio Joaquim me deixava de boca aberta, apressei-me a acrescentar. Obrigado senhor agente. Assim me fui, em direcção a casa.
 Já são nove da noite e a capela da igreja está repleta. A vizinhança que vela o corpo. O silêncio é quase total, a viúva envolta na negrura da roupa, olha vidrada o corpo dentro do caixão. Os vizinhos, homens, estão todos a um canto da capela, de pé alguns de chapéu, ou, boné por entre as mãos, pendidas ao longo do corpo, em silêncio. De vez em quando trocam uns olhares cúmplices. As vizinhas, espalhadas nas várias cadeiras e bancos de madeira, circundam a urna, entregues à carpideira. Até aqui tudo bem, ou, tudo mal. O desgraçado pôs termo à vida, assim, sem mais, nem menos, e eu sinto-me culpada, devia ter dado atenção à sua conversa, ao invés de me preocupar com o maldito banco de xisto Amanhã pego num martelo e acabo com ele.
A viúva: Só sabe olhar para o marido, e, eu, também tenho estado de olho naquele olhar: parece que lhe saltam faíscas dos olhos!
 A Francelina levanta-se, dirige-se ao corpo e quase salta para dentro do caixão até que começa a gritar:
  Ai Jaquim, Jaquim… tã bom que tu eras. Mê desgraçado… nã tinhas o direito de fazer isso, muito menos, sem me pedires autorização… e agora, com quem vou falar? Responde, estás a ouvir? Surdo que nem uma porta, até depois de morto aiiii...!
Foi a deixa O silêncio, quebrou-se, os vizinhos começaram a contar histórias da mocidade, e as vizinha, alcovitam entre dentes na vida da megera. Essa, voltou a sentar-se e adormeceu.
Enquanto, eu, penso Porque é que o Alentejo é tão propício ao suicídio? Às vezes acho que a vida nesta terra tem outro significado, e a liberdade e a autonomia, são vistas com outros olhos, este é um povo, massacrado. Penso Podem tirar-lhes o direito à saúde, a uma velhice tranquila, mas, nunca lhe podem roubar o direito a morrer, quando, assim o entendem, e não gosto nada de ter estes pensamentos.
Também penso: nos muitos que conheci ao longo da vida e que puseram termo à mesma. Assim, sem mais, nem menos.
 Será que foi, sem mais, nem menos, ou será, que ninguém se interessou devidamente pelos sinais, manifestados, antes do acto?
 Tal como aconteceu com o tio Joaquim, desta história. A maioria, nas entrelinhas diz que o fará, só que andamos tão ocupados com os nossos problemas que ignoramos os sinais, mesmo que sejam por demais evidentes. 
Assim: o Alentejo é a região do país com a taxa de suicídio mais elevada.
E eu penso O Tio Joaquim disse-me tudo na conversa de hoje de manhã!

Antónia Ruivo.
Abril de 2013.



O homem da minha vida

O barulho ensurdecedor oprime-lhe os sentidos, mesmo assim o pensamento fluí para um tempo distante, uma fase da sua vida em que nada importava além do seu bem-estar interior, tudo e todos eram apêndices do seu crer. Pouco ou nada importava para além do seu olhar, as suas dores de cabeça eram sempre maiores que as dos outros, as suas necessidades mais exigentes, até o ar que respirava era mais puro do que o de qualquer outro mortal.
O barulho continua mas deixou de o ouvir, aos seus ouvidos chega agora a sua voz doce que lhe sussurra ´´serás sempre o homem da minha vida´´ deixou de ter frio, fome ou calor, passou a alimentar-se da voz cristalina, quantas vezes a ignorou, quantas vezes lhe virou as costas deixando-a a falar sozinha, outras tantas duvidou quando lhe dizia ´´serás sempre o homem da minha vida.´´
Aos poucos o corpo adormece, incapaz de mover um músculo recorda a dona da voz, a calma que ela lhe transmitia amiúde, as brigas por tudo e por nada, as vezes que lhe virou as costas. Virava-lhe as costas sempre que ela se queixava da vida que tinha a seu lado, como se o facto de o ter a seu lado não fosse suficiente, como se as horas que lhe dispensava não satisfizessem qualquer mulher por mais exigente que fosse, afinal acordava a pensar nela e deitava-se a pensar nela, mesmo que a seu lado dormisse uma outra qualquer, quem era ela afinal sem ele, ninguém, portanto que se desse por feliz e nada de queixumes. As mulheres falam sempre demais e ela abusava.
Surpreendentemente hoje sente que ela falava muito pouco, mesmo agora quando lhe disse ´´amo-te, amei-te assim que te vi´´ porque não grita ela como nas alturas em que não suportando a sua falta de tacto lhe dizia ´´desaparece da minha frente´´ os seus olhos traiam as palavras, imploravam que ficasse, mas ele sempre ou quase sempre os ignorou, pegava na deixa e desaparecia a sete pés, e agora ala acabou de lhe dizer ´´amo-te´´ e ele sabe que ela não mente, aliás sempre o soube mesmo quando lhe chamava mentirosa, ou quando ela lhe dizia ´´estou farta desta vida´´ e ele repetia´´ também eu, mas um dia terei outra vida.´´
Uma vida sem ela, claro está, um homem do seu calibre tem que ter uma mulher à sua altura, socialmente falando, o seu sangue é mais vermelho que o de qualquer outro, portanto o sangue que correr nas veias da mulher que merecer passar o resto da vida com ele tem que ter o sangue de igual tom, vermelho escuro, da cor da lógica, porque a mania que ela tem de viver sem lógica, tira do sério qualquer homem que meça a vida e a felicidade pelo volume da conta bancária, e da vassalagem que os restantes mortais lhe prestam. Como pode uma mulher dizer que em tendo o suficiente para viver condignamente lhe basta, como pode uma mulher sentir-se feliz por conduzir uma casca de noz se a vida tem mais sabor ao volante de um Ferrari.
´´Amo-te´´ repetiu ela quase sem voz, hei-de amar-te até ao último dos meus dias, e é por te amar tanto que sei ver os teus e os meus defeitos.´´
Mas que defeitos, os dela que está cheia deles, ele é um ser imaculado, como consegue ser tão petulante e repetir continuamente que ele tem defeitos.
´´Amei-te e tu sabes, até ao último dos meus dias´´ mas qual foi o último dos seus dias, se um dia lhe virou as costas deixando-a a falar sozinha para não mais voltar. Recorda o seu corpo franzino em tempos cheio de vida, o seu franco sorriso que aos poucos esmoreceu, as lágrimas silenciosas que lhe inundavam o rosto enrugado pelo sofrimento, recorda que lhe virou as costas naquele dia.
O barulho recomeçou, como podem as folhas mortas fazer tanto barulho no Outono, o jardim está deserto, nunca a levou a passear pelo jardim, de mãos dadas como os namorados, foi sempre um homem muito ocupado, mas hoje ela teve tempo de o acompanhar no passeio matinal, faz tantos anos que lhe virou costas, mas hoje ela esteve ali e disse-lhe que o amou até ao fim dos seus dias.
Afinal quando foi o último dos seus dias, ele nunca o soube, durante muito tempo acordou e dormiu a pensar nela mas ela morreu sozinha num quarto de hospital, dizendo o seu nome através da última lágrima que verteu, enquanto ele pensava nela e se aconchegava no calor de outra.
 Ele tinha o sangue vermelho escuro e o dela era vermelho claro, o azeite na água, um vem sempre ao de cima, igual á verdade e á força dos sentimentos.
Levantou-se arrastando os pés através das folhas mortas, as únicas que ainda não o abandonaram, e regressou a casa vazia de vida e de sentimento, o seu sangue vermelho escuro valeu-lhe todo o amor que enjeitou, num dia não muito distante até as folhas o deixarão, nesse dia ela vai lá estar de mãos estendidas, pedir-lhe-á um abraço e repetirá através dos tempos ´´ apesar da cegueira serás sempre o homem da minha vida.´´
Vidas

Eram duas crianças e viviam os tempos da liberdade, os anos setenta trouxeram com eles a esperança num Portugal mais justo, liberto finalmente das garras da ditadura.
Eles cresciam, sonhavam mudar o mundo, ela escrevia versos de amor e vida, ele derrubava barreiras em sonhos libertos, vestiam bandeiras vermelhas soltas no vento. Amavam-se.
Mas a vida é cheia de desencontros. Alguns anos mais tarde cada um toma o seu rumo, amavam-se mas não estava escrito nas estrelas um caminhar lado a lado, o vazio deixado pelas circunstâncias era medonho, um dia os seus olhares cruzaram-se jogaram tudo para o alto e tentaram ser felizes, mas a ingratidão do destino pesou mais uma vez, havia outras vidas pelo meio era preciso que essas vidas vingassem sem mazelas, mais uma vez adiaram o destino indo cada um para seu lado.
Ela deixou de escrever versos de amor, ficou vazia e ressequida, escondia num sorriso a saudade, sabia que ele levava a vida de encontrão, sabia que ele tinha pesadelos, onde duas crianças mão na mão construiriam um castelo de sonhos. E seriam felizes.
Passaram quase vinte anos onde a distância manteve um elo ingrato de insatisfação, por fim mais perto evitavam cruzar-se iam sabendo um do outro pelos amigos, estavam envelhecidos e tinham medo de um olhar mais de perto, tinham medo de tentar a felicidade, havia agora muitas mais barreiras, vidas construídas tendo como base a distância.
 Num dia de sol passaram lado a lado, os olhares cruzaram-se e gritaram um amor magoado, ele baixou a cabeça e quase correu, ela ainda o viu olhar para trás na esquina da vida. Soube tempos mais tarde pela voz de um amigo que estava doente, mais uma vez o destino falava mais alto.
Numa noite de um mês de Janeiro indo ela sozinha para casa depois do trabalho, algo incompreensível aconteceu, era tarde na estrada vazia de vida apesar da noite límpida um nevoeiro repentino se assolou para logo se dissipar, ela embrenhada na condução nocturna não estranhou mas passado algum tempo repara numa mancha de umidade no vidro do carro mesmo defronte ao lugar do passageiro, nesse momento um mau estar repentino a assolou, parou o carro apesar da estrada deserta e ali ficou, não sabe quanto tempo, chorou, chorou, porquê não o soube, a angustia era enorme, quando chegou a casa deitou-se e adormeceu. Dormiu tranquilamente nessa noite como há muito não acontecia. No outro dia toca o telefone e a voz do outro lado diz-lhe- ele morreu estava muito doente e morreu.
Hoje ela escreve versos de amor nas noites de insónia, escreve versos de liberdade e revolta, escreve dela e dele, para ela e para ele, escreve o olhar que deitavam sobre o mundo que os distanciaria. Hoje ela sabe que o mundo não é perfeito, sabe também que talvez nunca desse certo se tivessem apenas olhado para si mesmos sem pensar nos outros, sabe que apesar de tudo um dia acreditaram que podiam mudar o mundo.
Hoje passados quase dois anos da sua morte, ela sente que nos momentos difíceis ele está ali, a seu lado, ele foi e é o amigo sempre presente, apesar da distância ele sempre acreditou que ela um dia daria o salto, sairia de um anonimato reconfortante e levaria aos outros em versos de amor o alento com o qual não souberam lidar.
É uma mulher serena e a serenidade encontra-a na recordação de que um dia lá atrás alguém ao ler os seus versos de amor lhe dizia nunca pares de escrever, porque tu és poeta, e agradece por ele ter sido o primeiro a acreditar na sua poesia, porém quando o mês de Janeiro se aproxima e olha o anel que ele um dia lhe deu, não lhe consegue perdoar o não ter ficado para a ver crescer.

Conversas com o destino (III)

Uma da manhã e eu ali estava, sentada numa sala de espera onde quem espera desespera.
Porque será que as salas de espera são todas iguais, insípidas de sensações, nas suas variadas cores e formas, cumprem o seu papel criteriosamente, despojar qualquer réstia de exultação do coração mais insensível. Pouco passava das dez da noite quando o telefone tocou. - Vizinha não sei o que tenho, desde manhã que estou tonta, muito tonta, anda tudo à roda e a minha filha não me atende o telefone, desde manhã vizinha. Consegui arrastar-me e só a tenho a si por perto, desculpe, desculpe vizinha mas acuda-me que não sei o que tenho.
 A senhora Maria estava agora ligada a uma garrafa de soro e eu esperava. Nesta minha espera tentava decifrar o rosto que fintava o chão mesmo na minha frente, tal como eu esperava, mas ao contrário de mim conseguia manter-se quieta no mesmo lugar, eu já trocara de cadeira uma dúzia de vezes e ela sempre no mesmo lugar, fintando os quadrados pretos e brancos dos ladrilhos.
Por fim levantou os olhos na minha direcção, agarrei esse momento e arremessei a pergunta que notabilizou o silêncio.- Tem algum familiar lá dentro.- Olhou-me então, senti um calafrio, o seu olhar era vazio, mais vazio que as paredes da sala de espera.
De novo o silêncio, não me atrevi a lançar-lhe mais um olhar, agora era eu que fintava os ladrilhos e sentia cravado em mim o seu olhar vazio, pela minha cabeça circulava mil e um pensamentos todos eles me lembravam abandono e morte.- Não tenho ninguém- fintei-a de novo, deve ter no mínimo setenta anos. A sua voz soou de novo tranquila.
  - Antigamente tinha vida, depois do meu marido partir, fiquei sozinha muito nova tinha pouco mais de trinta anos, com um filho nos braços, um dia conheci um homem que me prometeu cuidar de mim e amar-me, a senhora sabe como é, nós as mulheres acreditamos no amor, acreditei nele, mas ele era esquisito tinha comportamentos esquisitos, mas eu amava-o,
Visitava-me sempre durante o dia, outras vezes era eu que ia ter com ele aos mais variados sítios, sempre em sítios diferentes. Comecei e ter a pulga atrás da orelha e um dia sem que ele soubesse segui-o, foi terrível, descobri que ele era casado, tinha família, e eu era o tapa buracos do seu casamento.
Parou, respirou pausadamente como se estivesse a ganhar forças para continuar, e eu sem saber o que dizer torcia as mãos desesperadamente, tentando encontrar as palavras que não conhecia para a reconfortar.
  - Sabe, com o tempo a minha vida tornou-se num inferno, estava ligada a um homem que era de outra, o meu filho crescia que lhe dizer quando as perguntas aparecessem, que explicação dar. As exigências cada vez eram maiores, ele tinha família tinha uma vida da qual não abdicava, mas achava-se rei e senhor da minha, interferia em tudo, fui-me afastando de algumas amizades que ainda tinha, umas vezes por vergonha, outras por exigência do homem com que estava. Um dia quando me dei conta o meu filho era homem também, não aceitou que a mãe estivesse ligada a um homem casado, doí-me o dia em que o meu filho saiu de casa para não mais voltar, não sei onde está, não sei se é vivo ou morto. Não sei se tenho netos.
E eu ali estava enjaulada na sala de espera sem palavras.
  - Hoje tenho pouco mais de cinquenta anos- Arregalei os olhos como pode ter pouco mais de cinquenta anos com aquele aspecto envelhecido, não, está enganada, só pode. Leu-me o pensamento e continuou- A senhora é jovem ainda, vê-se que a vida a tem tratado bem, mas não sabe o quanto ingrata a vida pode ser, não tenho ninguém lá dentro, moro aqui perto e quando não consigo dormir venho para aqui, assim fico menos sozinha, isto hoje está calmo mas tem dias que é o diabo, e aqui ainda consigo ser útil àqueles que estão piores que eu.
O intercomunicador chamou pelo meu nome, a senhora Maria já estava melhor era hora de voltar para casa, levantei-me e beijei aquela mulher, nunca lhe disse que tinha 50 anos, não valia a pena, ela sabia que a vida sempre teve cuidado comigo. Uma destas noites volto à sala de espera, se ela lá estiver faço-lhe companhia, afinal tem sempre alguém que está pior que nós e ainda assim consegue pensar nos outros...................

Uma Traça que se chama esperança

A Maria estava cabisbaixa sentada na velha cadeira de baloiço que pertencera à avó Rosa. Tantas vezes se sentou no colo da avó nesse mesmo lugar. Uma lagrimita corre atrevida pela sua face morena.
Fez hoje oito dias que a avó Rosa morreu, e a Maria ainda não consegue compreender o que se passou, de um dia para o outro a avó tinha morrido. Uma noite antes de morrer, recorda a Maria, a avó segredou-lhe, toma conta da minha cadeira, e da traça que lá habita, o seu nome é Esperança. De seguida deu-lhe um beijinho na bochecha e adormeceu.
Agora Maria passa os tempos livres sentada na cadeira ali mesmo no alpendre, o gato júnior e a gata Pipoca fazem-lhe companhia, parece que são os únicos que a entendem e que entendem a falta que a avó lhe faz. A mãe e o pai têm que trabalhar, quando chegam a casa lá pelas seis da tarde, vem tão cansados do corre-corre da cidade, que nem se apercebem da sua tristeza.
O que Maria não sabe, é que ainda ontem o pai e a mãe comentaram noite fora o seu estado de espírito.
  - A nossa menina não está nada bem, disse a mãe.
  - Tens razão, a voz do pai soou preocupada,- já falei com ela, já lhe expliquei que a morte faz parte da vida, as flores morrem, as árvores, os peixes, até os animais de estimação, e as pessoas também, é a lei da natureza. Tudo morre para mais tarde se renovar.
  - Eu também lhe expliquei isso, querido. A mãe deixou fugir um soluço.- Gostava tanto da avó Rosa, sei que teve uma vida cheia e que morreu feliz, mas uma criança de sete anos não consegue entender estas coisas.
  - Amanhã volto a falar com a nossa princesa, disse o pai,- boa noite querida.
  - Boa noite. Segredou a mãe.
E agora Maria ali está pensativa, o Júnior de um lado a Pipoca do outro, estão os três à espera da traça, têm que tomar conta dela, Maria prometeu isso à avó Rosa, e as promessas são sempre para cumprir.
Mas o que será uma traça, a menina perguntou aos gatos, mas estes nem ligaram, que lhe haviam de responder, nunca viram nenhuma, ainda se fosse uma sardinha, ou um pardal de telhado, sabiam bem o que era, agora uma traça, que raio será isso.
Maria levantou os olhos ao ouvir o carro dos pais que chegavam de mais um dia de trabalho.
  - Olha a minha princesa, gritou o pai,- hum está bem acompanhada.
  - Olá minha querida, disse-lhe a mãe ao mesmo tempo que a beijava e lhe dava um abraço bem apertado.- Ficas aqui com o pai que eu vou fazer o jantar, até já.
O pai pegou na Maria ao colo e sentou-se na velha cadeira de baloiço. Ao baixar os olhos reparou numa pequena lagarta que saía de um orifício minúsculo existente no braço direito da cadeira.
  - Olha filha, uma traça, o pai apontava para a pequena lagarta.
A menina arregalou os olhos, os gatos quase caíram para o lado, tal foi o espanto, então aquela feia lagarta que mal se via a olho nu, de um amarelo tão baço, que fazia vertigens, aquilo é que era uma traça!
  - Quem havia de dizer, é a Esperança, disse a Maria tremelicando.
  - Dizer o quê filha, inquiriu o pai.
  - Que esta lagarta é que é a traça da minha avó. E que se chama Esperança.
  - Ó filha explica lá isso melhor, pediu o pai ao mesmo tempo que lhe passava a mão pela testa, para ver se ela estava com febre.
  - A avó Rosa pediu para eu tomar conta da traça que habitava na cadeira de baloiço, pediu-me isso antes de morrer.
  - Ah agora entendo, o pai agora já sabia porque é que a menina andava esquisita. – Anda, vamos mete-la dentro de uma caixa de fósforos, ao dizer isto pegou na pequena lagarta delicadamente e encaminharam-se para a cozinha, seguidos pelos gatos.
Há quatro dias que a Esperança habita a caixa de fósforos, e Maria todas as manhãs salta da cama e corre para a cozinha, abre sofregamente a caixa para ver se a lagarta já está dentro do casulo. O pai explicou-lhe que acontece o mesmo com todas as lagartas, todas elas tem muito pouco tempo de vida, todas elas se transformam em borboletas, para depois construírem um casulo com finos fios de seda que segregam e no qual se enroscam, Já dentro do casulo a lagarta transforma-se numa bela borboleta, para depois pôr os ovos, que por sua vez dão vida a novas lagartas.
É assim que acontece na natureza, tudo nasce, tudo morre e tudo faz nascer uma nova vida. Nada se desperdiça.
 A Maria está de novo sentada no alpendre, balançado o corpo na velha cadeira da avó Rosa, está à espera que chegue a noite, é assim desde que descobriu o que era uma traça. O pai também lhe explicou que a avó Rosa tinha ido para o céu e que agora era uma das estrelas que habitava lá em cima, no firmamento, a menina até já sabia qual era, era aquela que aparece todas as noites e brilha com tal intensidade que sobressai no meio de todas as outras. Era assim o sorriso da avó, brilhava com tal intensidade que a Maria nunca mais o vai esquecer.
No outro dia enquanto dormia a Maria conversou com a estrela e disse-lhe.
   - Fica descansada avozinha, que eu e os gatos vamos sempre tomar conta da tua traça e da sua família, sim porque tu não sabes, mas daquela lagarta feiosa, nasceram doze iguaizinhas a ela.
  - Vês como o pai e a mãe tinham razão, aconteceu o mesmo com a avó, e daqui por algum tempo no lugar de uma estrela terás centenas a visitar-te todas as noites. Boa noite minha querida.
  - Boa noite avozinha, balbuciou a menina ao avistar a estrela Polar ................

Conto de Natal

Maria…

    - Maria é o meu nome
    - Porquê Maria, retorquiu a criança de olhos arregalados.
    - De onde eu venho todas as mulheres são Marias.
    - Ah, agora entendi, é uma espécie de pacto, então adeus Maria.
     - Adeus menino sem nome.
A criança já não a ouviu, afastou-se numa corrida arrebatada, e a mulher continuou o seu caminho, desaparecendo por entre o nevoeiro.
O menino caminhava agora num passo moroso, era noite de Natal e não tinha para onde ir. Os pés doridos já não respondiam ao apelo do corpo, que procurava um sitio quente e seguro para passar a noite.
Todas as noites o mesmo caminhar, o mesmo procurar, não tem nome nem família, não tem idade, nem casa, sabe apenas que a malta o trata por olhos tristes, vai saciando a fome como pode, estendendo a mão à caridade, dessa forma sempre consegue arrecadar umas moedas, com um bocado de sorte sacia-se numa qualquer pastelaria, comendo todos os pasteis de nata que consegue engolir. Por vezes a sorte é madrasta, e os rapazes mais velhos roubam-lhe as parcas economias. Mas afinal sempre tem sorte, se não o roubarem e de seguida o sovarem, porque querem mais, e ele, apenas mais um menino de rua, que ao sabor dos tempos deixaram de cativar os passantes, não tem mais, só tem dois ou três dinheiros, o que é pouco muito pouco, para os rapazes que já andam na ganza.
De tão cansado já não consegue articular passo, também para quê, todos os lugares com algum aconchego estão ocupados, nos respiradouros do Metro acumulam-se corpos imundos de roupas esfarrapadas, tentando assim fugir ao frio, nas arcadas dos prédios famílias inteiras dormem resguardados por caixas de cartão, alguns tem cobertores, a esses a sorte bafejou. Ele apenas tem a roupa do corpo e um saco de plástico preto, que tirou de um caixote do lixo.
Agora está sentado junto a uma árvore, sob o tronco duro pende a sua cabeça inerte, o fraco corpito enfiado no saco de plástico, de olhos vidrados em direcção ao nada, os lábios roxos pelo frio da noite esboçam um ligeiro sorriso.
     - És tu de novo, menino sem nome, a mulher sorriu para ele e pegou-lhe ao colo.
     - Olá Maria, que bom que estás aqui. Mas diz-me porque do sitio de onde vens todas as mulheres são Marias.
     - Porque Maria é mulher primeira, porque Maria é o nome de Mãe.
     - Então tu és mãe, eu não tenho mãe.
     - Tens sim meu filho, eu sou a tua mãe também, e agora quero que te afastes de mim, que deixes o meu colo e vás ver o sol.
     - Mas, é Natal mãe, no dia de Natal o sol não costuma aparecer. Não me mandes para o frio de novo.
     - Sabes, as mães não costumam mentir e eu digo-te que neste Natal o sol brilhará. Por isso tens que ir.
O menino sem nome sorriu, deu um passo em frente acenando a Maria que já havia desaparecido. Não sabe onde está, apenas sente o calor aconchegante de um cobertor sob o seu corpo fraco, olha em volta e repara na grande janela, por onde o sol o espreita através do vidro. Nesse instante alguém entra na divisão.
O Menino sorri para a senhora de bata branca que lhe diz.
    - Olá o meu nome é Maria e o teu qual é?
    - Maria, como a minha mãe, eu não tenho nome, mas chamam-me olhos tristes.
    - A partir de hoje, vais ter nome e vais deixar de ser triste, o senhor doutor diz que já te podes levantar, e que podes vir passar o resto do dia de Natal a minha casa. Queres?
    - Quero se não der muito trabalho. E posso comer pasteis de nata.
Alfredo levanta-se do sofá onde se encontra sentado, carrega nos braços a pequena Maria que acabou por adormecer, ao som das suas palavras.
Dirige-se à velha senhora que se encontra no sofá da frente e diz-lhe.
    - O que ela não sabe ainda, é que eu sou o rapaz dos olhos tristes, e tu a sua avó, és a Maria que me resgatou da rua.
    - O que ela ainda não sabe meu filho, é que tu foste um entre muitos meninos de olhos tristes.
Alfredo, baixou-se e beijou a testa da velha senhora.
    - Vamos dormir mãe que já é tarde, feliz Natal.

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Palavras ao Vento Suão, Antónia Ruivo