Cartas

 (I)

Meu amor, no silêncio que me é habitual escrevo mais uma carta qualquer, entre tantas que não lês. Agora até as cartas caíram em desuso, tenho saudades do cheiro a novo do papel de carta, tenho saudades de todas as cartas que te escrevi e tu não leste, tinhas descoberto que o amor não pode ser cego e muito menos surdo.
Agora escrevo tudo aquilo que falta dizer, sabendo de antemão que amanhã haverá algo por falar, é curioso como os pensamentos ditam palavras inacabadas, iguais a nós seres inacabados no desencontro.
A vida corredia impera sobre as vontades, fecham-se os olhos num comodismo reconfortante, enfim, sabemos que a vida passa fazendo tão pouco para sermos nós a passar.
Gosto de te imaginar sentado na varanda, olhando o céu quando cai a noite, sempre penso que te debruças sobre a mesma constelação que o meu olhar perscruta, não é curiosidade é a certeza que outras vidas nos olham, não podemos estar sozinhos neste oceano.
São tantas as coisas que tenho para te dizer, de mim, mas o medo de que me aches ainda mais louca sela-me os lábios, às vezes acredito que não sou eu, não sou eu que rebusco vocábulos alienados e construo frase após frase o descalabro aos teus olhos, outras o sangue corre de tal maneira apressado que o coração salta pela ponta do lápis e cava olheiras negras nos teus olhos.
Como eu sonhei um dia que me entenderias, falaríamos os dois a mesma língua, o tempo acabou por esfumar esse sonho e hoje muito poucos sonhos me restam.
Por agora termino a missiva que não vais ler, ficará guardada no baú do imaginário e será lida por muitos olhos, tal como eu são muitos os que escrevem cartas sem destinatário credível, acabando as mesmas por amaciar os corações desamparados.
É isso que os teus olhos nunca entenderão, fechaste o coração à ilusão, a tua vida é metricamente regida pela adição e subtracção.
Um dia saberás que ninguém te amou de tal modo, esse amor foi capaz de te desnudar a alma sem pedir consentimento. Nesse dia meu amor será tarde eu andarei entretida entre vocábulos e serei feliz.

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(II)

De novo me encontro tentando transcrever em missiva aquilo que me fascina em ti, ou me retrai. Mas uma nuvem paira no ar num arremesso de imodéstia.
São dez da noite de um dia sem data, meu amor, redescubro nesta missiva as palavras adocicadas que há muito esqueci.
Quando os dias são cinzentos recordo os teus olhos cor de mel e o doce desse olhar aquece cada pedaço de pele, os poros dilatados absorvem o odor dos teus cabelos, a maciez da tua pele transporta-me para os primeiros tempos, aqueles em que acreditamos piamente no nascer do sol. Por vezes imagino que me trazes rosas, mas tu nunca me deste rosas, quem sabe porque nunca te disse que gostaria de receber rosas, eu sei, este meu modo de calar aquilo que me atormenta leva-te ao descuido.
Sabes, o que me fascina em ti, desconheço, és uma pessoa comum e como todas as pessoas comuns não transportas surpresas, a vida a teu lado seria talvez monótona e a monotonia aterroriza-me, por outro lado fico lívida sempre que imagino, e se não fizesses parte da minha vida, o que seria.
Como vês é esta luta constante entre o ser e o ter que me afastam do teu trilho, ou me impelem a procurar-te, depois existem os pontos incomuns que nos unem, tu gostas de burburinho citadino, eu odeio, eu gosto de ouvir o mar de conversar com ele, para ti o mar não passa de uma chatice necessária, eu gosto do campo e das formigas, elas causam-te urticaria, gostas de números e contas de somar, para mim são anomalias que a vida nos impõe. Nós somos tão diferentes como o azeite na água, mas é essa diferença que nos atrai, somos o complemento que faltava na vida de cada um.
Por agora o término, dizendo que não sei viver a teu lado, mas sou incapaz de me imaginar sem ti.

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(III)

Chove copiosamente lá fora, os pingos de chuva batendo descontroladamente na janela trazem-me o som dos teus passos, que se abeiram da minha mesa, o teu perfume entranha-se nos meus sentidos, trouxe-me esta vontade louca de te escrever.
Não sei que força é esta que impele a escrever-te sabendo de antemão que não me olhas, pelo menos os teus olhos não vêem o que gostaria que visses em mim, passou muito tempo desde o último dia em que me olhaste.
Inquiro tanta vez, se alguma vez viste além da aparência ou da comodidade, estratega de sentidos e desejos.
Sei que me achas enganosa, tudo porque nunca calo o que penso e sinto. O que tu jamais saberás é que esta minha rebeldia é a força que me trás viva, sem ela seria uma espécie de molusco que se refugiaria na carapaça.
Eu sei meu amor, para pessoas habituadas a esconder emoções e sentimentos é muito difícil entender alguém como eu.
Então porque perdes tempo com alguém que não entendes, não sabes que a vida pode sair muito cara, nas perdas de tempo, por outro lado o medo de que não me queiras é medonho, é a minha contradição quando digo vai-te.
A chuva agora parou com ela levou o teu odor, não consigo mais imaginar-te esta noite no regaço do teu quarto onde um outro perfume paira, não é o da chuva que caiu, é uma mistura de querer e não ter, esse o perfume que te embala todas as noites enquanto eu escrevo cartas que não lês.

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( IV )
Escrevo uma carta de amor a todos os amores que não tive, escrevo também para aqueles que vivi principalmente aos que sobrevivi.
Escrever uma carta de amor é um acto translúcido a que a nossa mente incita. Não terá necessariamente de ser uma carta apaixonada, escrevem-se cartas de amor sob os mais variados pretextos, às mais variadas pessoas ou situações, amor é tudo o que tocamos com carinho e admiração, pobre seria o amor se este caduca-se nas relações homem-mulher.
Amor é mãe, pais, irmãos, amizade, é o desconhecido também.
Amor é saber olhar o mundo que nos rodeia, saber distinguir a sua beleza do seu lado obscuro. Amor é cruzar-nos pela manhã com um desconhecido e termos a capacidade de lhe dizer bom dia.





Palavras ao Vento Suão, Antónia Ruivo