segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A Velha Pasteleira ( Conto de Natal )

        Naquela manhã o branco das paredes afigurava-se mais branco, emoldurado pelo sol matinal de um dia de Inverno, por entre as pedras da calçada que os seus pés pisavam, em passos pesarosos mas controlados pelo peso da velha pasteleira, nasciam a medo galrachos, ervas daninhas difíceis de controlar, até nos passeios da aldeia.
Desconhecia, ou fingia desconhecer que era manhã de Natal, um ou outro transeunte esporádico que com ele se cruzava quase sempre baixava a cabeça, enquanto o cumprimentava num carinhoso bom dia. Assim acontecia todas as manhãs, ia para mais de quinze anos, quando naquele dia fatídico um AVC lhe tolhera para sempre os movimentos, ficando ainda assim com capacidade de locomoção vagarosa, fez então da bicicleta a sua bengala, e passou a percorrer as ruas da pacata aldeia alentejana todas as manhãs, quer fizesse sol ou chuva. A conselho do médico que o havia avisado, ou se habituava a andar a pé, e a comer com moderação, nada de fritos ou enchidos, e doces só de vez em quando, tinha também que cortar no tabaco e no copito de vinho que eram o seu consolo, ou ia desta para melhor, não restavam dúvidas.
Havia saído de casa, eram mais ou menos oito horas da manhã, sobressaltou-se com os lamentos do sino da igreja a anunciarem as nove horas, em compassadas badaladas. Como era possível só ter percorrido duas ruas e já ser tão tarde. As suas pernas cada vez mais cansadas ficavam a cada dia que passava, mais e mais preguiçosas, mas como era burro velho jamais lhe levariam a melhor, o coração também já não ajudava, e às vezes implorava a Deus para que o chamasse a si, ali, nas pedras do velhinho passeio, por entre os malditos galrachos. Logo os pensamentos de morte, deitava para trás das costas, como se atrevia a desejar tal coisa se a sua menina precisava tanto dele.
Apressou o passo de volta a casa, como se isso fosse possível, porém a sensação de andar mais depressa trazia-lhe aos lábios um sorriso, e a lembrança dos olhos negros que o esperavam em casa deixavam-no mais jovial. A sua menina era a luz dos seus olhos.
    - Bom dia Amélia, está um dia lindo.
Cumprimentou-a ao entrar no quarto. Tinha encostado a pedaleira religiosamente a uma das paredes do corredor que dava acesso à casa. Esta ficava por detrás de um velho armazém de cereais, agora sem vida mas que em tempos deu de comer a nove empregados e suas famílias. Sinais dos tempos modernos e da crise que assolou a vida de muitos. Com ele as coisas tinham sido diferentes, com a doença foi obrigado a fechar o negócio, como descendente um único filho de que há muito perdera o rasto. Havia o Emanuel, assim se chamava o filho, cruzado o oceano em busca de aventuras, que o dinheiro do pai proporcionavam, e um dia nunca mais chegaram notícias. Acreditava que o filho estava vivo, ao contrário do pessoal da aldeia que há muito o enterrara. Como não estava para que o apelidassem de velho louco, nas poucas conversas que mantinha sobre o assunto com algum vizinho, rematava sempre – se o meu filho fosse vivo. Ou então - paz à sua alma.
  - Então minha menina, hoje não cumprimenta o velho pai.
Ficou sem resposta, mas ia jurar que ela lhe sorrira. Como se não bastasse o maldito AVC, e o desaparecimento do filho pelas estradas da vida, brindara-o esta com a doença da mulher. Alzheimer, a maldita doença que tolhe a memória, e aos poucos a sua menina foi ficando cada vez mais menina, nem sequer se lembrava de ter sido mãe.
Por entre os pensamentos a vestiu e a sentou na cadeira de rodas, que empurrou a custo para junto da velha chaminé. Onde ardia um garboso madeiro de azinho, protegido por uma sólida grade de ferro fundido. Não fosse o diabo tecê-las e a sua menina cair ao lume.
Estava o tio Horácio a tentar convencer a mulher a engolir as sopas de leite do pequeno-almoço, quando umas pancadas secas no velho portão da entrada lhe chamaram a atenção.
    - Espera um pouco, vou ver quem é, não saias daqui.
Pediu ao sair para o corredor, frio e desnutrido de vida. Ainda afagou a velha pasteleira ao passar.
O homem que o portão escondia, tremia que nem varas verdes, não tanto pelo frio e sim pela saudade.
   - Bom dia…
Balbuciou o velho olhando-o intrigado, iria jurar que os olhos pretos por detrás das grossas lentes não lhe eram estranhos, tentou adivinhar as feições que a branca e farta barba escondia, mas o seu coração de velho conteve-se.
 - Bom dia, pai. Feliz Natal.

Estão agora os três, sentados em frente do braseiro, até os madeiros mais robustos, sucumbem às labaredas, e eles quase sucumbiram à vida e à distância, porém Deus acaba sempre por escrever certo por linhas tortas, e quem sabe sejam as dores o verdadeiro inferno, mas a esperança traz sempre uma nova aurora.
No dia seguinte talvez ganhasse coragem para conversar como filho sobre tão longa ausência, mas era dia de Natal e no Natal é tempo de viver.
Até a sua menina cantarolou, aquela cantiga de embalar com que adormecia o filho, quando bebé. Porém ao terminar perguntou com um brilho maroto nos olhos pretos.
 - Vocês os dois, quem são?
O Pai e o filho olharam um para o outro  e foi  o velho pai que respondeu.
  - Ninguém, somos ninguém, e ao mesmo tempo somos duendes, existimos para que tu sorrias.
   Ela deu uma gargalhada. Ao longe, na praça da aldeia o sino redobrava a Ave-Maria, assinalando que já era meia-noite.
E Jesus nasceu.

Antónia Ruivo, Dezembro 2014
Foto: Antónia Ruivo.



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Palavras ao Vento Suão, Antónia Ruivo